Por Ricardo Rabelo
Para quem vê a atuação de Javier Milei no governo argentino, e sua própria identidade pessoal o vê como alguém irracional e até mesmo psicopata, dada a forma como trata o povo argentino ou os deputados e senadores que recebem a todo momento os mais agressivos adjetivos, demonstrando total descompromisso com as instituições da democracia burguesa. No entanto, o governo Milei e seus projetos que visam submeter a classe trabalhadora argentina a uma superexploração e liquidação de todo e qualquer direito social corresponde muito racionalmente aos interesses do grande capital nacional e internacional.
Um exemplo claro disso é a relação íntima e escandalosa que tem o grupo Techint , um dos maiores conglomerados de origem italiana, mas com grande importância na Argentina. O Grupo não apenas apoia totalmente o governo Milei como cedeu vários executivos para gerenciar áreas fundamentais do governo anarcocapitalista.
O Grupo Techint é um conglomerado argentino fundado em Milão em 1945 pelo industrial italiano Agostino Rocca. Em 2021, o Grupo Techint teve um faturamento total de USD 27,1 bilhões. Em 2022, o faturamento aumentou para USD 33,55 bilhões. Em 2021, o Grupo Techint tinha 55.800 funcionários permanentes em todo o mundo. Em 2022, esse número aumentou para 59.555.
O Grupo Techint atua em vários setores, incluindo engenharia, construção, aço, mineração, petróleo e gás, plantas industriais e assistência médica. Ele oferece serviços globais para os segmentos de óleo e gás, energia, mineração, plantas petroquímicas e industriais, e obras civis de infraestrutura.
A sinuosa trajetória da economia Argentina
Nunca houve um compromisso tão grande de Paolo Rocca, CEO do grupo na Argentina, com um governo. O objetivo central do grande capital em geral e do grupo Techint em particular é redefinir a matriz econômica, política e social e da Argentina. Desde pelo menos a década de 40 do século XX que a Argentina foi construindo um padrão de acumulação do capital que privilegiava o capital industrial em detrimento do setor agrário, pelo menos no que diz respeito ao mercado interno.
Para se impor politicamente o Estado buscou estimular a industrialização com o alargamento do mercado interno e, se opondo aos interesses da oligarquia agrária, buscou uma aliança com a classe operária, através de concessões econômicas, como a manutenção de um nível salarial condizente com as necessidades básicas da população, e alguns serviços sociais como saúde e educação, subsidiados pelo Estado. Apesar desse processo ser interrompido várias vezes pelos golpes militares, que representavam a defesa dos interesses da oligarquia agrária e do capital estrangeiro norte americano, esse padrão de acumulação se manteve até o governo de Carlos Menem, quando começou a implantação do padrão e acumulação neoliberal no país.
A reação popular ao neoliberalismo, principalmente à crise econômica social e política gerada pelo chamado Plano Cavallo de estabilização econômica impediu a continuidade das políticas econômicas neoliberais. Os governos seguintes foram derrubados pela fúria popular contra a insistência destes em manter politica neoliberal. Após Menem, Fernando de la Rúa assumiu a presidência em 1999, mas renunciou em meio a uma crise econômica em 2001. Ele foi seguido por uma série de presidentes interinos, incluindo Ramón Puerta, Adolfo Rodríguez Saá e Eduardo Duhalde, antes de Néstor Kirchner assumir o cargo em 2003.
Os governos Kirchner buscaram recuperar o papel desenvolvimentista do Estado, negociar soberanamente a Dívida Externa e reestatizar algumas empresas estatais, além de procurar desenvolver políticas sociais e salariais que foram destruídas no período anterior. O Governo Macri, que veio em seguida ao de Cristina Kirchner retomou a implantação de reformas neoliberais e retomou o endividamento externo com um empréstimo gigantesco do FMI, totalmente desnecessário. O Governo Alberto Fernandes não conseguiu recuperar a economia destruída pelo Governo Macri, e manteve o endividamento externo com o FMI, o que levou a uma crise econômica caracterizada pela alta inflação e incapacidade de pagar a dívida.
O governo Milei representou a volta do neoliberalismo, com uma política de afronta aos direitos econômicos e sociais do povo argentino, buscando implantar um padrão de acumulação baseado na ultra exploração da força de trabalho onde o Estado deve, para isso, se abster de prover recursos para a grande maioria da população como saúde, educação, previdência e níveis salariais extremamente baixos.
O governo pretende acabar totalmente com as empresas estatais e se recusa até mesmo a prover recursos para obras públicas e gastos das províncias. Tudo para gerar um déficit primário zero que garanta um equilíbrio fiscal que o governo acredita que poderá eliminar a alta inflação. Trata-se de voltar à Argentina anterior à fase de industrialização, renunciando a manter qualquer elemento de soberania nacional, reconstruindo um Estado neocolonial com a economia se especializando na exportação de produtos primários e importação de todo o resto. Nesse sentido o governo reconheceu o pertencimento ao governo britânico das ilhas Malvinas, aprofunda os laços com o imperialismo norte americano e o sionismo israelense com características de total subserviência ao capital estrangeiro, cujos investimentos espera para poder dar um certo dinamismo à economia. O interessante é que o Plano de Milei recebeu apoio do FMI que tem retardado as exigências de resgates do empréstimo concedido ao governo Macri e sacramentado pelo Governo Alberto Fernandes.
As íntimas ligações do grupo Techint com o governo Milei
O governo Milei se liga ao grande capital em geral, não apenas ao grupo Techint. A começar pelo próprio Milei, o governo está fortemente vinculado também à Corporación América de Eduardo Eurnekian. Os funcionários mais proeminentes que participaram do Grupo Eurnekian são Nicolás Posse (Chefe de Gabinete), Guillermo Francos (Ministro do Interior) e Mariano Cúneo Libarona (Ministro da Justiça).
Mas a vinculação com o grupo de Paolo Rocca é mais extensa. O número de executivos do conglomerado da multinacional italiana com sede em Luxemburgo que desembarcou no governo libertário é impressionante
1. Miguel Ponte, de Recursos Humanos da Techint, ocupa um cargo-chave no Ministério do Trabalho.
2. Julio Cordero, do Departamento Jurídico da Techint, também desembarcou no Ministério do Trabalho.
3. Ernesto Rona, diretor da Techint e especialista em recursos humanos, no Ministério do Trabalho.
4. Horacio Marín, da Tecpetrol, é presidente e CEO da YPF.
5. Matrías Farina, da Tecpetrol, é responsável pela área de Exploração e Produção da YPF.
6. Gustavo Gallino, CEO da Techint Engenharia e Construção, é Vice-Presidente responsável pela área de Infraestrutura da YPF.
7. Federico Barroetaveña, da área financeira da Techint, é CFO da YPF.
8. Luis de Ridder, da Techint, é subsecretário de Hidrocarbonetos.
9. Horácio Amartino, de Orçamentos, Planejamento e Controle da Techint, será o novo diretor da Unidade de Execução de Gasodutos.
É interessante que a grande ligação destes executivos da YPF, a Petrobrás Argentina, com a empresa de petróleo e gás da Techint mostra que há grande possibilidade do grupo assumir uma YPF privatizada. É uma ironia da história que o velho Paolo Rocca, ex militante na juventude do grupo de extrema esquerda na Itália Lotta Continua promova agora uma intensa relação com um governo que pode ser classificado de ultra extrema direita com total concordância com os rumos da política econômica anarcocapitalista de Milei.
Certamente que este governo representa uma oportunidade extraordinária para estabelecer relações de poder tipicamente fascistas, com total subordinação do trabalho ao capital, e fundamentalmente mudar radicalmente o cenário político ao liquidar definitivamente a influência do peronismo e a transformar a economia argentina em um apêndice do capital norte americano e transnacional em geral.
Em um de seus pronunciamentos, em uma conferência de energia realizada em Houston, Estados Unidos, Rocca afirmou que o país está em uma situação muito difícil, com recessão e inflação muito alta, que agora está caindo quase pela metade. Seu apoio ao governo Milei foi explícito. Em uma declaração ousada, ele disse: “Pessoalmente, acredito que o programa será bem-sucedido. A Argentina precisa disso. É muito importante abrir novas oportunidades.”
Continuou dizendo que “temos muita esperança, talvez estejamos diante do início de um novo ciclo no país. O programa econômico (de Milei) é o que o país precisa: redução do déficit fiscal e dos gastos públicos de 40% para 25% e liberalização do mercado.”
O apoio não é racional, é incondicional
O empenho do grupo Techint ao governo Milei não advém de bons resultados que o grupo esteja tendo. Pelo contrário, no ciclo kirchnerista 2003-2015, a Tenaris, holding global, teve um “desempenho excepcional”, segundo Paolo Rocca. Em 2015 a empresa registrou um volume de negócios de 14,869 bilhões de dólares e um lucro histórico de 3958 bilhões de dólares. Esses resultados foram alcançados devido à demanda por serviços de petróleo em Vaca Muerta e, fundamentalmente, devido à conclusão do Gasoduto Presidente Néstor Kirchner (GPNK). A Tecpetrol, empresa petrolífera do grupo, comprou a mineradora canadense Alpha Lithium em outubro passado com um plano de US$ 800 milhões para extrair lítio em Salta.
A questão é que, de acordo com Rocca , o governo está seguindo as diretrizes do Plano T, elaborado pelo grupo empresarial. Elas são as seguintes:
* Ordem macroeconômica e marcos regulatórios virtuosos que geram os incentivos certos, acelerando investimentos e exportações de valor agregado.
* Alcançar um equilíbrio fiscal de longo prazo para dar previsibilidade à economia.
* Reduzir a inflação e abrir o crédito para atrair investimento privado.
* Regime de incentivos para grandes investimentos (incluído na Lei Omnibus e que oferece benefícios regulatórios, fiscais e cambiais desproporcionais).
* Eliminação dos controles cambiais.
* Reformas que visam simplificar a carga tributária sobre as empresas.
* Novas normas trabalhistas – redução da litigiosidade, incentivos à produtividade – que se adaptam às novas realidades do emprego (flexibilidade laboral).
Porque o grande capital apoia e participa do governo Milei
Essa adesão é, do ponto de vista econômico, totalmente irracional devido aos péssimos resultados econômicos até agora. O colapso da atividade econômica implica milhões de dólares em perdas, mas o que está em jogo não é a lucratividade imediata, mas a reconfiguração das relações de poder de longo prazo.
O processo iniciado com as primeiras medidas do governo Milei envolve, de um lado, um forte ajuste ortodoxo que visa modificar os preços relativos em favor dos setores oligopolistas e em detrimento da renda real dos setores populares. Por outro lado, o governo implementa diversas reformas estruturais neoliberais , com desregulamentação total da economia, privatizações ilimitadas , super exploração da força de trabalho e incentivo à reprimarização da economia que visam a implantação de um padrão de acumulação onde o grande capital, especialmente o da Techint voltado para a exploração de petróleo e gás, terá total primazia. Nas palavras do CEO do grupo Techint, Paolo Rocca, trata-se de “repor a economia” e depois tentar impor essa já mencionada “irreversibilidade” por meio da estabilização que poderia tomar forma a partir da dolarização.
Os violentos conflitos do século 21 levam a uma exacerbação da demanda por energia, minerais e alimentos, que são os principais ativos do país. Soma-se a isso o potencial da jazida não convencional de Vaca Muerta e a produção de lítio e outros minerais em diferentes províncias. São essas as atividades em que os setores dominantes percebem uma situação virtuosa para realizar um processo de acumulação de capital ampliado, sustentado pela pilhagem dos produtos primários e o consequente declínio dos processos de industrialização do país.
O objetivo principal é encerrar o ciclo do eterno retorno, ou seja, a alternância entre os governos de pilhagem e os governos “nacionais e populares” que tentam devolver aos setores populares os direitos e processos que vêm sendo violados. Trata-se de manter a maioria da população em uma situação de incapacidade para reagir ao ataque violento do governo aos seus direitos e criar uma situação de capitalismo selvagem que amorteça qualquer conflito social.
A burguesia argentina internacionalizada julga que o governo Milei pode ser uma oportunidade para implantar um novo padrão de acumulação em que se crie novamente um enclave colonial de produtos primários e a população trabalhadora seja submetida a um verdadeiro apartheid , eliminando todas as suas conquistas históricas e tornando essa nova situação irreversível ao término dessa mudança estrutural com a dolarização.
O papel da burguesia agrícola
Até recentemente a burguesia agrícola apresentou grande representação e liderança política já que ainda alimentavam a acumulação de capital agroexportador e eram grandes proprietários de terra. Os grupos econômicos Bunge y Born, Bemberg, Loma Negra foram emblemáticos nesta fase. Depois da adoção das políticas neoliberais a liderança desta fração do capital passou para outros de seus membros como Techint, Clarín, Pampa Energía, Arcor, que não têm presença de destaque e muito menos exercem a liderança da agricultura dos Pampas. Essa situação antecipa conflitos e contradições significativas no interior dos setores dominantes e, consequentemente, no funcionamento do governo. Um deles pode ser visto no debate sobre impostos de exportação e a intenção de aumentá-los nas primeiras iniciativas do atual governo.
Nesta fase, se o governo se estabilizar e conseguir implementar seu projeto, o capital financeiro será a fração do capital que exercerá hegemonia e, consequentemente, liderará o processo de acumulação de capital e conduzirá toda a atual política neoliberal. Tudo depende de o governo Milei conseguir alcançar equilíbrios internos no bloco no poder, ao mesmo tempo em que possa limitar a resistência popular às suas medidas econômicas. Caso contrário, no contexto da retomada das lutas populares e do consequente enfraquecimento do governo, o poder econômico poderá até sacrificar Milei, mas não hesitará em tentar implantar um regime ditatorial para poder impor seus objetivos sem qualquer obstáculo. Dessa forma, é imperioso que o movimento popular encaminhei uma grande mobilização pela derrubada do atual governo e a convocação imediata de novas eleições, com a exclusão do Libertad Avanza do regime político. É um movimento de características nazifascistas que, como vemos, usa das eleições para impor um governo que não respeita as liberdades democráticas e os direitos do povo a uma vida digna.
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