Por Ricardo Rabelo
Sob a presidência russa, os BRICS fizeram progressos impressionantes. Ao longo de 2024, Moscou consolidou o bloco como uma alternativa efetiva, do ponto de vista político, econômico e cultural, ao bloco imperialista e seus vassalos, que abdicam de sua soberania e liberdade de expressão em proveito único e exclusivo de um país, os Estados Unidos. O bloco criou as condições para evoluir para um estágio existencial superior, adquirindo o caráter de uma verdadeira organização internacional também em termos financeiros, com a criação de um sistema de pagamentos próprio, voltado para uma eficiência nas trocas intrabloco e com os países imperialistas. Não desenvolverá, por enquanto, uma moeda própria, mas se baseará cada vez mais nas trocas utilizando as moedas nacionais de cada país, e buscando uma utilização do dólar como propriamente uma moeda e não uma arma dos Estados Unidos.
Em suma, pode-se dizer que a Rússia fez todo o possível para que os BRICS avançassem em 2024, tornando a organização mais forte, mais unida, mais madura e mais preparada para os desafios futuros. Alguns dos eventos mais importantes para a geopolítica global de toda a década foram realizados durante a Cúpula.
Como resultado dessa importante gestão russa dos Brics nesse ano ficou evidente que, ao contrário do que afirmaram os líderes do G7, a Rússia nunca esteve tão bem situada no contexto das relações internacionais, se tornando o centro das atenções durante a cúpula, não só dos países participantes, mas também da mídia internacional. Nesse aspecto, a entrevista coletiva do Presidente Putin foi um grande evento, com participação de órgãos de imprensa de todo mundo, inclusive dos países imperialistas.
O fim da era Bretton Woods
Após a Segunda Guerra Mundial, o FMI e o Banco Mundial tornaram-se as principais agências de cooperação e ação internacional na economia mundial. Essas foram instituições que surgiram do Acordo de Bretton Woods de 1944, que estabeleceu a ordem econômica mundial que vigorou plenamente até 1971, quando o Presidente Nixon declarou unilateralmente extinta a conversibilidade do dólar em ouro.
Apesar dessa transformação do dólar em uma moeda como qualquer outra, seu valor foi mantido pela força do domínio do imperialismo. O FMI e o Banco Mundial, depois da grande crise de 2008, tornaram-se os instrumentos de extração de enormes montantes de recursos dos países do “Sul Global”, necessários para financiamento de gastos cada vez mais improdutivos do imperialismo norte americano. Os ataques avassaladores contra esses países, como ocorreu no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria entre outros mostram essa faceta destrutiva do capitalismo atual. O imperialismo destruiu esses países porque seus governos ousaram desafiar o seu poder., ensaiando fazer o que hoje o Brics pratica como bloco, eliminando o cancerígeno dólar de suas transações Esse caráter destrutivo se situa também nas operações de salvamento de bancos e fundos financeiros como ocorreu em 2008 e mais recentemente, com o Silicon Valley Bank, onde somas gigantescas de recursos são destruídas pelo “buraco negro” da especulação numa operação de socialização dos prejuízos e capitalização privada de lucros.
Em termos de política econômica, o FMI é talvez mais conhecido pela imposição de “Programas de Ajuste Estrutural”. Os empréstimos do FMI foram “concedidos” a países em dificuldades econômicas com a condição de que eles concordassem em eliminar seus déficits, reduzir os gastos públicos e o papel do Estado no desenvolvimento do país, abrir seus mercados às importações e privatizar (em benefício das multinacionais) setores-chave da economia. Na medida que o imperialismo não é fator mais de desenvolvimentos dos países atrasados, a política do FMI submete estes países à liquidação de sua estrutura produtiva e condena a população à miséria e à fome. Passaram a ser frequentes em vários países as rebeliões populares, que colocam os governos em completa crise política. Até 2024, 54 países estão em crise de dívida e muitos estão gastando mais no “ serviço” de suas dívidas, ou seja em juros escorchantes, do que no financiamento de educação ou saúde.
Os empréstimos do Banco Mundial são concebidos como um “motosserra” para abrir espaço para o alargamento dos mercados lucrativos para os ávidos capitalistas. Esses sanguessugas não conseguem obter lucros dos seus próprios investimentos, devido à crise de superprodução atual e à queda da taxa de lucro. Os economistas do Banco Mundial agem como “cães de guarda” do capital e rejeitam o papel desenvolvimentista do investimento e do planejamento estatal. O setor público, nos países emergentes, é submetido a uma escassez permanente de recursos, o que abre caminho para que se tornem fontes de lucros para os capitalistas, que usam os setores de saúde, educação e até mesmo a segurança pública, como seus mercados geralmente monopolistas e produtores de grandes lucros. Até mesmo as prisões hoje são objeto desta invasão capitalista, pois os investimentos são protegidos pelo Estado.
Uma análise da Oxfam de dezessete programas recentes do FMI descobriu que, para cada dólar que o FMI incentivou esses países a gastar em proteção social, disse-lhes para cortar US $ 4 por meio de medidas de austeridade. A análise concluiu que os níveis mínimos de gastos sociais eram “profundamente inadequados, inconsistentes, opacos e, em última análise, fracassados”.
Enquanto isso a China colocou em marcha seu projeto de “Um cinturão, uma rota”, baseado em pesados investimentos em infraestrutura e por empréstimos a juros baixos e sem a exigência de sacrifícios dos países que participam deste projeto. Enquanto o imperialismo nega-se a perdoar dívidas e estabelecer juros razoáveis, a China já procedeu a vários perdões e renegociações das dívidas de seus empréstimos. Eles são, em geral, empréstimos concessionais, ou seja, relativos a um determinado projeto, como um porto, uma usina elétrica, ou estradas ferroviárias. Não é à toa que cresce cada vez mais o número de países que saem das garras das instituições do imperialismo para o “crescimento compartilhado” dos chineses.
Isso não fez com que os EUA e os demais países imperialistas tentassem competir com os chineses ou russos no incentivo ao desenvolvimento dos países. Eles simplesmente preferiram o caminho da tentativa de destruição destes países, com a pressão sobre a Rússia até ele não ter outra opção senão tomar medidas para se proteger da agressividade golpista Ucraniana, e encher os dois países de sanções extorsivas. E submetem a China a todo tipo de pressão militar sobre Taiwan.
Os cinco países do BRICS agora têm um PIB combinado maior do que o do G7 em termos de paridade de poder de compra. E adicionando os novos membros, a diferença é ainda maior. Primeiro, dentro dos BRICS, é a China que contribui com a maior parcela do PIB do BRICS (17,6% do PIB global), seguida muito atrás pela Índia (7%), enquanto a Rússia (3,1%), o Brasil (2,4%) e a África do Sul (0,6%) respondem por apenas 6,1% do PIB global. Não é, portanto, uma potência econômica igualmente distribuída entre os BRICS. Mesmo usando dólares internacionais ajustados ao PPC, o PIB per capita dos EUA chega a US$ 80.035, mais que o triplo do da China, que chega a US$ 23.382 (embora com um quarto da população).
O grupo BRICS+ não é composto por países imperialistas e, portanto, não tem sentido comparar seu peso econômico com o bloco imperialista do G7. Houve um avanço de unidade política destes países, sendo que a cúpula de Kazan assistiu ao acordo histórico entre China e Índia e a proximidade entre Irã e Arábia Saudita é bem maior atualmente. A questão que ainda preocupa é se a Arábia Saudita vai finalmente se integrar ao bloco e abandonar seus laços com os EUA. O bloco, nesta cúpula, unificou a visão de que é necessária sua organização econômica e financeira de forma alternativa ao imperialismo.
A constituição do caráter anti-imperialista dos Brics é semelhante ao derretimento das geleiras da Antártida: o processo já se iniciou há pelo menos dez anos, e é inexorável no sentido de abalar as estruturas de dominação hegemônica imperialistas, se tornando uma alternativa ainda embrionária, mas real e concreta.
Por um lado, há uma tendência de enfraquecimento das economias do bloco imperialista, que enfrenta um crescimento muito lento e declínios acentuados ao longo da década; e, por outro, a expansão contínua da China, Rússia, Irã e até Índia. Isso significa que o outrora forte domínio militar e financeiro dos EUA e seus aliados (hoje servos) é sustentado nos pés de barro de produtividade, investimento e lucratividade francamente baixos.
No meio do caminho, há uma pedra: o Brasil
Seria bom pensar que esse caminho que está se desenvolvendo atualmente nos BRICS continuará em uma linha de progresso constante em 2025, mas, há problemas à vista. Se depender da presidência do Brasil encabeçada por Lula, os BRICS podem enfrentar um período de dificuldades, atrasos e desafios já que a falta de confiança que Lula diz ter sobre a Venezuela, também pesa sobre o governo brasileiro em relação ao seu compromisso com os Brics. A preferência de Lula em presidir neste ano o G-20 e não o Brics e o anúncio de que vai priorizar, no segundo semestre de 2025, a COP-30 já mostra que o BRICS não é uma prioridade para Lula. Além disso, o governo enviou uma delegação diplomática sem qualquer peso ou capacidade política real e com pouco conhecimento do cenário mundial atual à cúpula de Kazan.
Isso não é surpreendente, considerando que Lula deu vários passos recentes em direção a uma política de sintonia com o Ocidente. Cortou laços com a Nicarágua, não reconheceu a vitória de Maduro e condenou a operação militar especial russa na Ucrânia foram apenas alguns desses passos. A atitude do governo brasileiro com relação ao genocídio em Israel é completamente ambígua, ao não expulsar o “bolsonarista” embaixador de Israel e não romper relações diplomáticas com um governo que já o declarou “persona non grata “ em Israel. No dia em que completou um ano de genocídio da Palestina, o Governo Lula divulgou uma nota lamentando as mortes de israelenses no dia 7 de Outubro de 2023 e designou a resistência palestina como “um grupo de terroristas fanáticos religiosos.”
O discurso de Lula via teleconferência em Kazan mostrou bem essa questão. Ele começa agradecendo pelo apoio recebido na sua presidencia do G-20 e convida os países a participar da aliança global contra a fome e a pobreza e quando fala dos Brics logo entra na discusssão da emergência climática . Apesar de se referir à questão da construção do mundo multipolar ela é vista na ótica da redução das assimetrias e do acesso dos paises emergentes à Inteligencia artificial e o avanço tecnológico em geral. Ressalta também o caráter dinâmico das economias dos Brics, em oposição ao baixo crescimento dos ocidentais.Repete suas declarações sobre o genocídio em Gaza e também condena a guerra entre Ucrânia e Russia, defendendo a volta da paz. Defende a criação de um sistema de pagamentos dos Brics, mas coloca exigências de “cautela” e “solidez técnica” para sua implementação . O lema de sua presidência nos Brics será” fortalecendo a cooperação do Sul global para uma governança mais inclusiva e sustentável” mostrando sua concepção de governança como algo “neutro” e não assentado em um conflito antagônico entre emergentes e imperialistas.
Não há dúvida que Lula “mudou”, já que não é mais o mesmo líder enérgico em favor dos países emergentes que conquistou a simpatia do mundo durante seus primeiros mandatos. Além disso, o governo Lula aplica no Brasil uma política neoliberal radical, baseada em ultrapassadas metas de déficit zero e austeridade fiscal em um país em que é grande o nível de pobreza, miséria e fome permanentes.Apesar de defender, em nível global, a taxação dos super-ricos, não tomou nenhuma medida para implementar isso no Brasil, um país em que dividendos e lucros são isentos de impostos.
O veto de Lula à entrada da Venezuela nos Brics, mesmo como país parceiro, representa um ponto de inflexão e que traça uma linha de continuidade e aprofundamento da sua submissão aos desígnios do imperialismo. O governo brasileiro dificilmente vai atuar efetivamente em favor desse sistema alternativo ao SWIFT, na medida em que ele é combatido pelos Estados Unidos e internamente pelos neoliberais . A estratégia de política econômica do governo brasileiro é de um neoliberalismo que talvez só seja ultrapassado pela Argentina de Milei. Na preparação da Cúpula de Kazan se organizou um encontro dos ministros da Fazenda para aprofundar esta questão do sistema de pagamentos. O ministro brasileiro, Fernando Haddad, simplesmente não compareceu. Ele tem insistido com Lula para que o Governo não faça parte do Cinturão e Rota e até agora a posição do Brasil está indefinida.
Não é difícil prever que, no atual cenário, 2025 será um ano repleto de desafios para os BRICS, pois certamente a pressão do imperialismo vai aumentar. Apesar das contradições internas, o bloco está maduro e possui um eixo formado por China, Rússia e Irã, que, além de ter superado vários problemas internos , agregou países parceiros importantes com destaque para a Turquia . Certamente o bloco continuará avançando em 2025, pois a alternativa é muito ruim, a submissão completa ao imperialismo em total decadência.
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